Da Liberdade dos
Antigos Comparada a dos Modernos*
Benjamin Constant
Senhores,
Proponho-me
submeter a vosso julgamento algumas distinções, ainda bastante novas, entre
duas formas de liberdade, cujas diferenças até hoje não foram percebidas ou
que, pelo menos, foram muito pouco observadas. Uma é a liberdade cujo exercício
era tão caro aos povos antigos; a outra, aquela cujo uso é particularmente útil
para as nações modernas. Esta análise será interessante, salvo engano, sob um
duplo aspecto.
Primeiro, a confusão
destas duas espécies de liberdade foi, entre nós, durante épocas por demais
conhecidas de nossa revolução, a causa de muitos males. A França viu-se
molestada por experiências inúteis cujos autores, irritados pelo pouco êxito
que alcançaram, tentaram forçá-la a usufruir de um bem que ela não desejava e
contestaram-lhe o bem que ela queria.
Em segundo
lugar, levados por nossa feliz revolução (eu a chamo feliz, apesar de seus
excessos; porque atento para seus resultados) a desfrutar os benefícios de um governo
representativo, é interessante e útil saber por que este governo, o único sob o
qual podemos hoje encontrar alguma liberdade e tranquilidade, foi inteiramente
desconhecido para as nações livres da antiguidade.
Sei que
pretendem-se descobrir marcas desse governo em alguns povos antigos, na
república da Lacedemônia por exemplo, e em nossos ancestrais, os gauleses; mas
é um engano.
O governo da
Lacedemônia era uma aristocracia monacal, de modo nenhum um governo
representativo. O poder dos reis era limitado, mas o era pelos Éforos e não por
homens investidos de uma missão semelhante à que a eleição confere em nossos
dias aos defensores de nossas liberdades. Sem dúvida, os Éforos, depois de
terem sido instituídos pelos reis, foram nomeados pelo povo. Mas eram apenas
cinco. Sua autoridade era religiosa tanto quanto política; participavam do
próprio governo, quer dizer, do poder executivo; por isso, sua prerrogativa,
como a de quase todos os magistrados populares nas antigas repúblicas, longe de
ser simplesmente uma barreira contra a tirania, tornava-se, as vezes, ela
própria uma tirania insuportável.
O regime dos
gauleses, que se parecia bastante com aquele que um certo partido desejaria nos
devolver, era ao mesmo tempo teocrático e guerreiro. Os padres gozavam de um
poder sem limites. A classe militar, ou a nobreza, possuía privilégios
insolentes e opressivos. O povo não tinha direitos nem garantias.
Em Roma, os
tribunos tinham até certo ponto uma missão representativa. Eles eram os
porta-vozes dos plebeus que a oligarquia, que é a mesma em todos os séculos,
havia submetido, derrubando os reis, a uma escravidão duríssima. No entanto, o
povo exercia diretamente uma grande parte dos direitos políticos. Ele se reunia
para votar as leis, para julgar os patrícios acusados de delito: só havia,
portanto, em Roma, fracos traços do sistema representativo.
Este sistema é
uma descoberta dos modernos e vós vereis, Senhores, que a condição da espécie
humana na antiguidade não permitia que uma instituição desta natureza ali se
introduzisse ou instalasse. Os povos antigos não podiam nem sentir a
necessidade nem apreciar as vantagens desse sistema. A organização social
desses povos os levava a desejar uma liberdade bem diferente da que este
sistema nos assegura.
É a demonstrar-vos
esta verdade que a leitura desta noite será consagrada.
Perguntai-vos
primeiro, Senhores, o que em nossos dias um inglês, um francês, um habitante
dos Estados Unidos da América entendem pela palavra liberdade.
É para cada um
o direito de não se submeter senão às leis, de não poder ser preso, nem detido,
nem condenado, nem maltratado de nenhuma maneira, pelo efeito da vontade
arbitrária de um ou de vários indivíduos. É para cada um o direito de dizer sua
opinião, de escolher seu trabalho e de exercê-lo; de dispor de sua propriedade,
até de abusar dela; de ir e vir, sem necessitar de permissão e sem ter que
prestar conta de seus motivos ou de seus passos. É para cada um o direito de
reunir-se a outros indivíduos, seja para discutir sobre seus interesses, seja
para professar o culto que ele e seus associados preferem, seja simplesmente
para preencher seus dias e suas horas de maneira mais condizente com suas
inclinações, com suas fantasias. Enfim, é o direito, para cada um, de influir
sobre a administração do governo, seja pela nomeação de todos ou de certos
funcionários, seja por representações, petições, reivindicações, às quais a
autoridade é mais ou menos obrigada a levar em consideração. Comparai agora a
esta a liberdade dos antigos.
Esta última
consistia em exercer coletiva, mas diretamente, várias partes da soberania
inteira, em deliberar na praça pública sobre a guerra e a paz, em concluir com
os estrangeiros tratados de aliança, em votar as leis, em pronunciar
julgamentos, em examinar as contas, os atos, a gestão dos magistrados; em
fazê-los comparecer diante de todo um povo, em acusá-los de delitos, em
condená-los ou em absolvê-los; mas, ao mesmo tempo que consistia nisso o que os
antigos chamavam liberdade, eles admitiam, como compatível com ela, a submissão
completa do indivíduo à autoridade do todo. Não encontrareis entre eles quase
nenhum dos privilégios que vemos fazer parte da liberdade entre os modernos.
Todas as ações privadas estão sujeitas a severa vigilância. Nada é concedido à
independência individual, nem mesmo no que se refere à religião. A faculdade de
escolher seu culto, faculdade que consideramos como um de nossos mais preciosos
direitos, teria parecido um crime e um sacrilégio para os antigos. Nas coisas
que nos parecem mais insignificantes, a autoridade do corpo social
interpunha-se e restringia a vontade dos indivíduos. Em Esparta, Terpandro não
pode acrescentar uma corda à sua lira sem ofender os Éforos. Mesmo nas
relações domésticas a autoridade intervinha. O jovem lacedemônio não pode
livremente visitar sua jovem esposa. Em Roma, os censores vigiam até no
interior das famílias. As leis regulamentavam os costumes e, como tudo
dependia dos costumes, não havia nada que as leis não regulamentassem.
Assim, entre
os antigos, o indivíduo, quase sempre soberano nas questões públicas, é escravo
em todos seus assuntos privados. Como cidadão, ele decide sobre a paz e a
guerra; como particular, permanece limitado, observado, reprimido em todos seus
movimentos; como porção do corpo coletivo, ele interroga, destituí, condena,
despoja, exila, atinge mortalmente seus magistrados ou seus superiores; como
sujeito ao corpo coletivo, ele pode, por sua vez, ser privado de sua posição,
despojado de suas honrarias, banido, condenado, pela vontade arbitrária do todo
ao qual pertence.
Entre os
modernos, ao contrário, o indivíduo, independente na vida privada, mesmo nos
Estados mais livres, só é soberano em aparência. Sua soberania é restrita,
quase sempre interrompida; e, se, em épocas determinadas, mas raras, durante as
quais ainda é cercado de precauções e impedimentos, ele exerce essa soberania,
é sempre para abdicar a ela.
Devo aqui,
Senhores, deter-me um instante para prevenir uma objeção que me poderia ser
feita. Há na antiguidade uma república na qual a escravização da existência
individual ao corpo coletivo não é tão completa como acabo de descrevê-la. Esta
república é a mais célebre de todas; podeis deduzir que desejo falar de Atenas.
Voltarei a este ponto mais tarde e, admitindo a verdade do fato, expor-vos-ei a
causa. Veremos por que, de todos os Estados antigos, Atenas é o que mais se
pareceu com os modernos. Em qualquer outro lugar a jurisdição social era
ilimitada. Os antigos, como diz Condorcet
não tinham nenhuma noção dos direitos individuais. Os homens não
eram, por assim dizer, mais que máquinas das quais a lei regulava as molas o
dirigia as engrenagens. A mesma submissão caracterizava os belos séculos da
república romana; o indivíduo estava, de certa forma, perdido na nação, o
cidadão, na cidade.
Vamos agora
retornar à origem dessa diferença essencial entre os antigos e nós.
Todas as
repúblicas antigas eram fechadas em limites estreitos. A mais populosa, a mais
poderosa, a mais importante delas não era igual em extensão ao menor dos Estados
modernos. Como consequência inevitável de sua pouca extensão, o espírito dessas
repúblicas era belicoso; cada povo incomodava continuamente seus vizinhos ou
era incomodado por eles. Impelidos assim pela necessidade uns contra os outros,
esses povos combatiam-se ou ameaçavam-se sem cessar. Os que não desejavam ser
conquistadores não podiam depor armas sob pena do serem conquistados. Todos
compravam a segurança, a independência, a existência inteira ao preço da
guerra. Ela era o interesse constante, a ocupação quase habitual dos Estados
livres da antiguidade. Finalmente, e como resultado necessário dessa maneira de
ser, todos os Estados tinham escravos. As profissões mecânicas e mesmo, em
algumas nações, as profissões industriais eram confiadas a mãos acorrentadas.
O mundo
moderno oferece-nos um espetáculo totalmente oposto. Os menores estados
atualmente são incomparavelmente mais vastos que Esparta ou Roma durante cinco
séculos. Mesmo a divisão da Europa em vários Estados e, graças ao progresso do
saber, mais aparente do que real. Enquanto antigamente cada povo formava uma
família isolada, inimiga nata das outras famílias, uma massa de homens existe
agora sob diferentes nomes, sob diversos modos de organização social, mas
essencialmente homogênea. Ela é suficientemente forte para não temer hordas
bárbaras. É suficientemente esclarecida para não querer fazer a guerra. Sua
tendência é a paz.
Essa diferença
acarreta uma outra. A guerra é anterior ao comércio; pois a guerra e o comércio
nada mais são do que dois meios diferentes de atingir o mesmo fim: o de possuir
o que se deseja. O comércio não é mais que uma homenagem prestada à força do
possuidor pelo aspirante à posse. É uma tentativa de obter por acordo aquilo
que não se deseja mais conquistar pela violência. Um homem que fosse sempre o
mais forte nunca teria a idéia do comércio. É a experiência - provando que a
guerra, isto é, o emprego da força contra a força de outrem, o expõe a
resistências e malogros diversos - que o leva a recorrer ao comércio, ou seja,
a um meio mais brando e mais seguro de interessar o adversário em consentir no
que convém à sua causa. A guerra é o impulso, o comércio é o cálculo. Mas, por
isso mesmo, devo haver um momento em que o comércio substitui a guerra. Nós
chegamos a esse momento.
Não quero
dizer que não tenha havido povos comerciantes entre os antigos. Mas esses povos
de certa maneira oram exceção à regra geral. As limitações do uma leitura não
me permitem apontar-vos todos os obstáculos que se opunham então ao progresso
do comércio; aliás vós os conheceis tanto quanto eu; falarei apenas do um
deles. O desconhecimento da bússola obrigava os marinheiros da antiguidade a
não perder de vista as costas; Atravessar as colunas de Hércules, ou seja,
passar o estreito de Gibraltar, era considerado o mais ousado dos
empreendimentos. Os fenícios e os cartagineses, os mais hábeis dos navegadores,
só o ousaram muito mais tarde e seu exemplo permaneceu longo tempo sem ser
imitado. Em Atenas, da qual talaremos mais tarde, o juro marítimo era
aproximadamente de sessenta por cento; o juro habitual era apenas de doze por
cento, tanto a idéia de navegação distante implicava em ideia de perigo.
Além disso, se
pudesse entregar-me a uma digressão, que infelizmente seria longa demais, eu
vos demonstraria, Senhores, pelo detalhe dos costumes, dos hábitos, do modo de
traficar dos povos comerciantes da antiguidade com os outros povos, que esse
comércio era, por assim dizer, impregnado do espírito da época, da atmosfera de
guerra e de hostilidade que os cercava. O comércio era então um acidente feliz:
é hoje a condição normal, o fim único, a tendência universal, a verdadeira vida
das nações. Aliás, elas querem o descanso; com o descanso, a fartura; e, como
fonte da fartura, a indústria. A guerra é cada dia um meio menos eficaz de
realizar seus desejos. Suas chances não oferecem mais, nem aos indivíduos, nem
às nações, benefícios que igualem os resultados do trabalho pacífico o dos
negócios regulares. Para os antigos, uma guerra feliz acrescentava escravos,
tributos, terras, à riqueza pública ou particular. Para os modernos, uma guerra
feliz custa infalivelmente mais do que vale.
Enfim, graças
ao comércio, à religião, aos progressos intelectuais e morais da espécie
humana, não há mais escravos nas nações europeias. Homens livres devem exercer
todas as profissões, atender a todas as necessidades da sociedade.
Pode-se prever
facilmente, Senhores, o resultado necessário dessas diferenças.
Primeiro, a
extensão de um país diminui muito a importância política que toca,
distributivamente, a cada indivíduo. O republicano mais obscuro do Roma e de
Esparta era uma autoridade. Não acontece o mesmo com o simples cidadão da
Grã-Bretanha ou dos Estados Unidos. Sua influência pessoal é um elemento
imperceptível da vontade social que imprime ao governo sua direção.
Em segundo
lugar, a abolição da escravatura privou a população livre de todo o lazer que o
trabalho dos escravos lhe permitia. Sem a população escrava de Atenas, vinte
mil atenienses não teriam podido deliberar cada dia na praça pública.
Em terceiro
lugar, o comércio não deixa, como a guerra, intervalos de inatividade na vida
do homem. O exercício continuo dos direitos políticos, a discussão diária dos
negócios de Estado, as discussões, os conciliábulos, todo o cortejo e movimento
das facções, a agitação necessárias, recheio indispensável, se ouso empregar
esta expressão na vida dos povos livres da antiguidade, que se teriam
entediado, sem esse recurso, sob o peso de uma ociosidade dolorosa,
acarretariam apenas perturbações e cansaço às nações modernas, onde cada
indivíduo, ocupado por suas especulações, por seus empreendimentos, pelos
resultados que obtém ou espera, quer ser desviado disso o menos possível.
Finalmente, o
comércio inspira aos homens um forte amor pela independência individual. O
comércio atende a suas necessidades, satisfaz seus desejos, sem a intervenção
da autoridade. Esta intervenção é quase sempre, e não sei por que digo quase,
esta intervenção é sempre incômoda. Todas as vezes que o poder coletivo quer
intrometer-se nas especulações particulares, ele atrapalha os especuladores.
Todas as vezes que os governos pretendem realizar negócios, eles o fazem menos
bem e com menos vantagens do que nós.
Disse,
Senhores, que vos falaria de Atenas, cujo exemplo poderia opor-se a algumas de
minhas assertivas, mas que, ao contrário, vai confirmar todas elas.
Atenas, como
já reconheci, era a mais comerciante de todas as repúblicas gregas; assim
sendo, concedia a seus cidadãos muito mais liberdade individual do que Roma ou
Esparta. Se pudesse entrar em detalhes históricos, eu vos faria ver que o
comércio tinha feito desaparecer, entre os atenienses, varias das diferenças
que distinguem os povos antigos dos povos modernos. O espírito dos comerciantes
de Atenas era semelhante ao dos comerciantes de nossos dias. Xenofonte nos diz
que, durante a guerra do Peloponeso, eles tiravam seus capitais do continente
da Ática e os enviavam para as ilhas do Arquipélago. O comércio havia criado
entre eles a circulação. Encontramos em Isócrates sinais do uso das letras de
câmbio. Observai, pois, quanto seus costumes pareciam-se com os nossos. Em suas
relações com as mulheres, vereis (cito ainda Xenofonte) os esposos, satisfeitos
quando a paz e uma amizade discreta reina entre o casal, fechar os olhos ao
irresistível poder das paixões, perdoar a primeira fraqueza e esquecer a
segunda. Em suas relações com os estrangeiros, vê-los-emos estender os
privilégios a todo aquele que, transportando-se com a família para seu
território, instala um trabalho ou uma fábrica; por fim, ficaremos
impressionados com seu amor excessivo pela independência individual. Na
Lacedemônia, diz um filósofo, os cidadãos acorrem quando um magistrado os
chama; mas um ateniense não se conformaria que o considerassem dependente de
um magistrado.
No entanto,
como várias outras circunstâncias que determinavam o caráter das nações antigas
existiam também em Atenas; como havia uma população escrava e como o território
era muito limitado, encontramos ai vestígios da liberdade dos antigos. O povo
faz as leis, examina a conduta dos magistrados, intima Péricles a prestar
contas, condena generais à morte. Ao mesmo tempo, o ostracismo, ato legal e
louvado por todos os legisladores da época, o ostracismo, que nos parece uma revoltante iniquidade, prova que o indivíduo era ainda subordinado à supremacia do corpo
social em Atenas, mais do que em qualquer Estado social livre da Europa do
nossos dias.
Conclui-se
do que acabo de expor que não podemos mais desfrutar da liberdade dos antigos a
qual se compunha da participação ativa e constante do poder coletivo. Nossa
liberdade deve compor-se do exercício pacifico da independência privada. A
participação que, na antiguidade, cada um tinha na soberania nacional não era,
como em nossos dias, uma suposição abstrata. A vontade de cada um tinha uma
influência real; o exercício dessa vontade era um prazer forte e repetido. Em consequência, os antigos estavam dispostos a fazer muitos sacrifícios pela
conservação de seus direitos políticos e de sua parte na administração do
Estado. Cada um, sentindo com orgulho o que valia seu voto, experimentava uma
enorme compensação na consciência de sua importância social.
Essa
compensação já não existe para nós. Perdido na multidão, o indivíduo quase nunca
percebe a influência que exerce. Sua vontade não marca o conjunto; nada prova,
a seus olhos, sua cooperação. O exercício dos direitos políticos somente nos
proporciona pequena parte das satisfações que os antigos nela encontravam e, ao
mesmo tempo, os progressos da civilização, a tendência comercial da época, a
comunicação entre os povos multiplicaram e variaram ao infinito as formas de
felicidade particular.
Concluí-se que
devemos ser bem mais apegados que os antigos à nossa independência individual.
Pois os antigos, quando sacrificavam essa independência aos direitos políticos,
sacrificavam menos para obter mais; enquanto que, fazendo o mesmo sacrifício,
nós daríamos mais para obter menos.
O objetivo dos
antigos era a partilha do poder social entre todos os cidadãos de uma mesma
pátria. Era isso o que eles denominavam liberdade. O objetivo dos modernos é a
segurança dos privilégios privados; e eles chamam liberdade as garantias
concedidas pelas instituições a esses privilégios.
Eu
disse no inicio que, por não terem percebido essas diferenças, homens bem
intencionados tinham causado grandes males durante nossa longa e tempestuosa
revolução. De forma nenhuma desejo dirigir-lhes críticas demasiado severas:
mesmo o erro deles era desculpável. Não se consegue ler as belas páginas da
antiguidade, não se revivem as ações desses grandes homens sem experimentar uma
emoção muito especial que nada do que é moderno nos faz sentir. Os velhos
elementos de uma natureza, anterior à nossa por assim dizer, parecem despertar dentro
de nós face a essas lembranças. É difícil não sentirmos nostalgia desses tempos
em que as faculdades do homem desenvolviam-se numa direção traçada
antecipadamente, mas em um destino tão amplo, tão forte pela sua própria força
e com tanto sentimento de energia e de dignidade; e, quando nos carregamos a
essas reminiscências, é impossível não desejarmos imitar o que invejamos.
Essa impressão
era profunda, principalmente quando vivíamos sob governos abusivos que sem
serem fortes, eram vexatórios, absurdos nos princípios, miseráveis na ação;
governos que tinham por móvel e arbitrário por meta, o aviltamento da espécie
humana e que, ainda hoje, certos homens ousam louvar como se pudéssemos jamais
esquecer que fomos testemunhas e vítimas de sua obstinação, de sua impotência e
de sua derrocada. O objetivo de nossos reformadores foi nobre e generoso. Quem
de nós não sentiu o coração bater de esperança no começo da estrada que eles
pensavam abrir? E ai daqueles que ainda hoje não sentem a necessidade de declarar
que reconhecer alguns erros cometidos por nossos primeiros guias não significa
denegrir sua memória, nem negar opiniões que os amigos da humanidade
professaram de geração em geração!
Mas esses
homens tinham ido buscar várias de suas teorias nas obras de dois filósofos,
que eles próprios não tinham se dado conta das modificações transmitidas por
dois mil anos às tendências do gênero humano. Examinarei, pois, o sistema do
mais ilustre desses filósofos, J. J. Rousseau, e mostrarei que, transportando
para os tempos modernos um volume de poder social, de soberania coletiva que
pertencia a outros séculos, este gênio sublime, que era animado pelo amor mais
puro à liberdade, forneceu, todavia, desastrosos pretextos a mais de um tipo de
tirania. Evidentemente, salientando o que considero como um engano importante a
revelar, serei ponderado em minha refutação e respeitoso em minha crítica.
Evitarei, é claro, juntar-me aos detratores de um grande homem. Quando o acaso
me faz aparentemente concordar com eles em um único ponto, desconfio de mim
mesmo; e, para consolar-me de parecer, por um instante, de sua opinião, sobre
uma única e parcial questão, preciso desautorizar e descolorir quanto posso a
esses supostos auxiliares.
No entanto, o
interesse pela verdade deve superar considerações que tornam tão poderosos o
brilho de um talento prodigioso e a autoridade de uma imensa reputação. Aliás,
não é a Rousseau, como veremos, que se deve principalmente atribuir o erro que
vou combater: ele pertence muito mais a um, de seus sucessores, menos eloquente, mas não menos austero; e mil vezes mais exagerado. Este, o abade de
Mably, pode ser considerado o representante do sistema que, conforme as máximas
da liberdade antiga, quer que os cidadãos sejam completamente dominados para que
a nação seja soberana, e que o indivíduo seja escravo para que o povo seja
livre.
O abade de
Mably, como Rousseau e como muitos outros, tinha, conforme os antigos, tomado a
autoridade do corpo social pela liberdade e todos os meios pareciam-lhe bons
para estender a ação dessa autoridade sobre a parte recalcitrante da existência
humana, da qual ele deplorava a independência. A queixa que ele expressa em
todas as suas obras é que a lei só possa atingir as ações. Ele teria desejado
que ela atingisse os pensamentos, as impressões mais passageiras, que ela
perseguisse o homem sem trégua e sem deixar-lhe nenhum refúgio onde pudesse
escapar a seu poder. Mal percebia, em qualquer povo, uma medida vexatória, já
pensava ter feito uma descoberta e a propunha como modelo; ele detestava a
liberdade individual como se detesta um inimigo pessoal; e, quando encontrava
na história uma nação que estivesse completamente privada dela, embora tampouco
tivesse ela liberdade política alguma, não podia deixar de admirá-la. Extasiava-se
com os egípcios porque, dizia ele, tudo era organizado entre eles pela lei,
desde o repouso até as necessidades; tudo era submetido ao poder do legislador;
todos os momentos do dia eram preenchidos por algum dever. Mesmo o amor estava
sujeito a essa intervenção respeitada e era a lei que, alternadamente, abria e
fechava o leito nupcial.
Esparta, que
reunia formas republicanas à submissão dos indivíduos, despertava no espírito
desse filósofo um entusiasmo mais forte ainda. Esse grande convento parecia o ideal
da perfeita república. Tinha por Atenas um profundo desprezo e teria dito com
prazer sobre essa nação, a primeira da Grécia, o que um fidalgo acadêmico dizia
sobre a Academia francesa: "Que despotismo espantoso! Todo mundo faz aí o
que quer". Devo acrescentar que esse fidalgo falava da Academia como ela
era há trinta anos.
Montesquieu,
dotado de espírito observador, porque tinha a cabeça menos ardente, não caiu
inteiramente nos mesmos erros. Impressionou-se com as diferenças que referi,
mas não distinguiu a verdadeira causa delas.
"Os
políticos gregos, diz ele, que viviam sob o governo popular, não reconhecia
outra força que não fosse a da virtude. Os de hoje só nos falam de manufaturas,
de comércio, de finanças, de riquezas e até de luxo”.
Ele atribui
essa diferença à república e à monarquia; é preciso atribuí-la ao espírito
oposto dos tempos antigos e dos tempos modernos. cidadãos das repúblicas,
vassalos das monarquias, todos querem privilégios e ninguém pode, no estado
atual das sociedades, deixar de querer isso. O povo mais afeito à liberdade em
nossos dias antes da emancipação da França, era também o povo mais afeito a
todos os prazeres da vida; e queria sua liberdade principalmente porque via
nela a garantia dos prazeres que venerava. Antigamente, onde havia liberdade,
podia-se suportar as privações; agora, onde há privação, é preciso a escravidão
para que alguém se resigne a ela. Seria mais fácil hoje fazer um povo de
espartanos do que educar espartanos para a liberdade.
Os
homens que foram levados pela onda dos acontecimentos a liderar nossa revolução
estavam, em consequência da educação que haviam recebido, imbuídos das opiniões
antiquadas e absurdas que os filósofos de que falei haviam posto em realce. A
metafísica de Rousseau, no interior da qual apareciam de repente, como
relâmpagos, verdades sublimes e passagens de uma eloqüência arrebatadora; a
austeridade de Mably, sua intolerância, seu ódio a todas as paixões humanas,
sua ânsia de escraviza-las todas, seus princípios exagerados sobre a competência
da lei, a diferença entre o que ele recomendava e o que existia, a verve com
que atacava as riquezas e até a propriedade - todas essas coisas deviam
encantar homens exaltados por uma vitória recente e que conquistadores do poder
legal, estavam desejosos de estender esse poder em todas as direções. Para eles
era uma autoridade preciosa a desses dois escritores que, desinteressadamente e
lançando anátema contra o despotismo dos homens, haviam posto em axioma o texto
da lei. Quiseram, pois, exercer a forca pública, segundo tinham aprendido com
seus guias, tal como fora exercida antigamente nos Estados livres. Acreditaram
que tudo ainda devia ceder frente a vontade coletiva e que todas as restrições
aos direitos individuais seriam largamente compensadas pela participação no
poder social.
Sabeis,
Senhores, o que resultou disso. Instituições livres, apoiadas no conhecimento
do espírito do século, teriam conseguido subsistir. O edifício renovado dos
antigos desmoronou, apesar de esforços e de muitos atos heróicos que merecem
admiração. É que o poder social feria em todos os sentidos a independência
individual sem, contudo, destruir-lhe a necessidade. A nação não pensava que
uma parte ideal em uma soberania abstrata valesse os sacrifícios que lhe
pediam. Em vão repetiam-lhe com Rousseau: as leis da liberdade São mil vezes
mais austeras do que é duro o jugo dos tiranos. Ela não aceitava essas leis
austeras e, em seu descontentamento, pensava às vezes que o jugo dos tiranos
seria preferível. A experiência a desenganou. Ela viu que a arbitrariedade dos
homens era pior ainda que as piores leis. Mas as leis também devem ter limites.
Se consegui,
Senhores, fazer-vos aceitar a opinião que, em minha convicção, esses fatos
produzem, reconhecereis comigo a verdade dos princípios seguintes:
A
independência individual é a primeira das necessidades modernas. Consequentemente, não se deve nunca pedir seu sacrifício para estabelecer a
liberdade política.
Concluí-se daí
que nenhuma das numerosas instituições, tão aplaudidas, que, nas repúblicas
antigas, impediam a liberdade individual é aceitável nos tempos modernos.
Provar essa
verdade, Senhores, parece inútil num primeiro momento. Muitos governos de nosso
tempo não parecem inclinados a imitar as repúblicas da antiguidade. No entanto,
por menos gosto que tenham pelas instituições republicanas, há certos costumes
republicanos pelos quais esses governos sentem certa afeição. E lamentável que
sejam precisamente aqueles que permitem banir, exilar, privar. Lembro-me que em
1802 foi introduzido, numa lei sobre os tribunais especiais, um artigo que
adotava na França o ostracismo grego, e só Deus sabe quantos eloquentes
oradores falaram-nos da liberdade de Atenas e de todos os sacrifícios que os
indivíduos deviam fazer para conservar essa liberdade a fim de que este artigo
fosse aceito, o que, contudo, não aconteceu. Da mesma forma, em época bem mais
recente, quando autoridades temerosas tentavam timidamente dirigir as eleições
a seu modo, um jornal, que não é tachado, no entanto, de republicano, propôs
restabelecer a censura romana para afastar os candidatos perigosos.
Creio, pois,
não me empenhar em uma digressão inútil se, para apoiar minha afirmação, disser
algumas palavras sobre essas instituições tão elogiadas.
O ostracismo
de Atenas repousava na hipótese de que a sociedade tem toda a autoridade sobre
seus membros. Nesta hipótese, ele podia justificar-se; e, num pequeno Estado,
onde a influência de um indivíduo, pelo seu crédito, sua clientela, sua glória,
balançava muitas vezes o poder da massa, o ostracismo podia ter aparência de
utilidade. Mas, para nós, os indivíduos tem direitos que a sociedade deve
respeitar e a influência individual, como já observei, está tão perdida numa
quantidade de influências, iguais ou superiores, que toda a opressão, motivada
na necessidade de diminuir essa influência, é inútil e, consequentemente,
injusta. Ninguém tem o direito de exilar um cidadão se ele não for condenado
por um tribunal regular, segundo lei formal que atribui a pena de exílio à ação
da qual é culpado. Ninguém tem o direito de arrancar o cidadão de sua pátria, o
proprietário de suas terras, o comerciante de seu negócio o esposo de sua
esposa, o pai de seus filhos, o escritor de suas meditações intelectuais, o
ancião de seus hábitos. Todo exílio político é um atentado político. Todo
exílio, infligido por uma assembleia com base em pretensos motivos de segurança
pública, é um crime dessa assembleia contra a própria segurança pública, que
não existe senão no respeito às leis, na observância das regras e na manutenção
das garantias.
A
censura romana supunha, como o ostracismo, um poder ilimitado. Numa república
em que todos os cidadãos, mantidos pela pobreza numa simplicidade extrema de
costumes, não exerciam nenhuma profissão que desviasse sua atenção dos
negócios do Estado e eram, assim, constantemente espectadores e juízes do poder
público, a censura podia, por um lado, ter mais influência e, por outro, a
arbitrariedade dos censores era contida por uma espécie de vigilância moral
exercida contra eles. Mas logo que a extensão da república, a complicação das
relações sociais e os refinamentos da civilização tiraram dessa instituição o
que lhe servia ao mesmo tempo de base e de limite a censura degenerou, mesmo em
Roma. Não fora, pois, a censura que criara os bons costumes; era a simplicidade
dos costumes que assegurava o poder e a eficácia da censura.
Na França, uma
instituição tão arbitrária como a censura seria ao mesmo tempo ineficaz e
intolerável. No estágio atual da sociedade, os costumes compõem-se de matizes
tênues, vagos, imperceptíveis, que se desnaturariam de mil maneiras se
tentássemos dar-lhes mais precisão. Somente a opinião pode atingi-los; só ela
pode julgá-los porque são da mesma essência. Ela se sublevaria contra toda autoridade
positiva que quisesse lhe dar mais rigor. Se o governo de um povo pretendesse,
como os censores de Roma, desonrar um cidadão por uma decisão discriminatória,
a nação inteira reclamaria contra essa sentença, não ratificando as
determinações da autoridade.
O que acabo de
dizer sobre a transplantação da censura para os tempos modernos aplica-se a
muitos outros aspectos da organização social, sobre os quais citam-nos a
antiguidade ainda com mais frequência e com muito mais ênfase: a educação, por
exemplo. O que não dizem sobre a necessidade de permitir ao governo de
apoderar-se das novas gerações para educá-las a seu modo, e em quantas citações
eruditas não apoiam essa teoria? Os persas, os egípcios, e a Galia, e a Grécia,
e a Itália vêm alternadamente figurar aos nossos olhos! Pois bem, Senhores, não
somos nem persas, submissos a um déspota, nem egípcios, subjugados por
sacerdotes, nem gauleses, que podem ser sacrificados por druidas, nem enfim
gregos ou romanos, cuja participação na autoridade social consolava da servidão
privada. Somos modernos que queremos desfrutar, cada qual, de nossos direitos;
desenvolver nossas faculdades como bem entendermos, sem prejudicar a ninguém;
vigiar o desenvolvimento dessas faculdades nas crianças que a natureza confia à
nossa afeição, tão esclarecida quanto forte, não necessitando da autoridade a
não ser para obter dela os meios gerais de instrução que pode reunir; como os
viajantes aceitam dela os longos caminhos, sem serem dirigidos na estrada que
desejam seguir. A religião também está exposta às lembranças do passado.
Defensores da unidade de doutrina citam-nos as leis dos antigos contra os
deuses estrangeiros e apóiam os direitos da igreja católica com o exemplo dos
atenienses que sacrificaram Sócrates por ter abalado o politeísmo; e o de
Augusto que desejava que se permanecesse fiel ao culto de seus ancestrais, o
que fez com que, pouco tempo depois, se entregassem os primeiros cristãos às
feras.
Devemos
desconfiar, Senhores, dessa admiração por certas reminiscências antigas. Se
vivemos nos tempos modernos, quero a liberdade que convêm aos tempos modernos;
se vivemos sob monarquias, suplico humildemente a essas monarquias de não
tornar emprestados às repúblicas antigas meios de oprimir-nos.
A liberdade
individual, repito, é a verdadeira liberdade moderna. A liberdade política é a
sua garantia e é, portanto, indispensável. Mas pedir aos povos de hoje para
sacrificar, como os de antigamente, a totalidade de sua liberdade individual à
liberdade política é o meio mais seguro de afastá-los da primeira, com a consequência de que, feito isso, a segunda não tardará a lhe ser arrebatada.
Vede,
Senhores, que minhas observações não tendem absolutamente a diminuir a
importância da liberdade política. Não extraio dos fatos que vos expus as consequências que certos homens deles extraem. Porque os antigos foram livres e
porque não podemos mais ser livres como os antigos, eles concluem que estamos
destinados a ser escravos. Gostariam de constituir o novo estágio social com um
pequeno número de elementos que dizem ser os únicos apropriados à situação
atual. Esses elementos são preconceito para atormentar os homens, egoísmo para
corrompê-los, frivolidade para aturdi-los, prazeres grosseiros para
degradá-los, despotismo para conduzi-los; e também conhecimentos positivos e
ciências exatas para melhor servir ao despotismo. Seria estranho que esse fosse
o resultado de quarenta séculos durante os quais o espírito humano conquistou
tantos recursos murais e físicos; não posso admitir isso.
Retiro das
diferenças que nos distinguem da antiguidade consequências bem opostas. Não é a
segurança que é preciso enfraquecer, é a regalia que é preciso aumentar, Não é
à liberdade política que desejo renunciar; é a liberdade civil que reclamo
junto com outras formas de liberdade política. Os governos não têm hoje, como
não tinham antigamente, o direito de atribuir-se um poder ilegítimo. Mas os
governos que brotam de fonte legitima têm ainda menos do que os de antanho o
direito de exercer sobre os indivíduos uma supremacia arbitraria. Possuímos
ainda hoje os direitos que tivemos sempre, os direitos eternos de aceitar as
leis, de deliberar sobre nossos interesses, de ser parte integrante do corpo
social do qual somos membros. Mas os governos têm novos deveres. Os progressos
da civilização, as transformações operadas através dos séculos pedem a
autoridade mais respeito pelos hábitos, pelos afetos, pela independência dos
indivíduos. Ela deve dirigir esses assuntos com mão mais prudente e mais leve.
Essa contenção
da autoridade, que se mantém em seus estritos deveres, atém-se também a seus
interesses bem entendidos; pois se a liberdade que convém aos modernos é
diferente da que convinha aos antigos, o despotismo que era possível entre
estes não é mais possível entre os modernos. Do fato de que estamos muitas
vezes mais descuidados com a liberdade política do que eles podiam estar, e, em
nossa condição costumeira, menos apaixonados por ela, pode-se concluir que
negligenciamos demais às vezes, e sempre sem motivos, as garantias que ela nos
assegura; mas ao mesmo tempo, como buscamos muito mais a liberdade individual
do que os antigos, nós a defenderemos, se for atacada, com muito mais ímpeto e
persistência; e possuímos para a defesa meios que os antigos não possuíam.
O comércio
torna a ação da arbitrariedade sobre nossa existência mais vexatória do que
antigamente, porque, sendo nossas especulações mais variadas, o arbítrio deve
multiplicar-se para atingi-las; mas o comércio também torna a ação da
arbitrariedade mais fácil de enganar, porque ele modifica a natureza da
propriedade, que se torna, por esta modificação, quase inapreensível.
O comércio dá
à propriedade uma qualidade nova: a circulação; sem circulação, a propriedade
não é mais que usufruto; a autoridade pode sempre influir no usufruto, pois
pode impedir o gozo dele; mas a circulação põe um obstáculo invisível e
invencível a essa ação do poder social;
Os efeitos do
comércio estendem-se ainda mais longe; não somente ele emancipa os indivíduos,
mas, criando o crédito, torna a autoridade dependente.
O dinheiro,
diz um autor francês, é a arma mais perigosa do despotismo; mas é ao mesmo
tempo seu freio mais poderoso; o crédito está submetido à opinião; a força é
inútil, o dinheiro esconde-se ou foge; todas as operações do Estado ficam
suspensas. O crédito não tinha a mesma influência entre os antigos; seus
governos eram mais fortes que os particulares; em nossos dias estes são mais
fortes que os poderes políticos; a riqueza é uma força mais disponível em todos
os momentos, mais aplicável a todos os interesses e, em conseqüência, muito
mais real e mais bem obedecida; o poder ameaça, a riqueza recompensa;
escapa-se ao poder enganando-o; para obter os favores da riqueza, é preciso
servi-la.
Em
conseqüência das mesmas causas, a existência individual é menos englobada na
existência política. Os indivíduos transportam para longe seus tesouros; levam
com eles todos os bens da vida privada; o comércio aproximou as nações e lhes
deu hábitos e costumes mais ou menos semelhantes; os chefes podem ser inimigos;
os povos são compatriotas.
Que o poder se
resigne, pois, a isso; precisamos a liberdade e a tentemos; mas, como a
liberdade que precisamos é diferente da dos antigos, essa liberdade necessita
uma organização diferente da que poderia convir à liberdade antiga. Nesta,
quanto mais tempo e forças o homem consagrava ao exercício de seus direitos
políticos, mais ele se considerava livre; na espécie de liberdade a qual somos
suscetíveis, quanto mais o exercício de nossos direitos políticos nos deixar
tempo para nossos interesses privados, mais a liberdade nos será preciosa.
Daí vem,
Senhores, a necessidade do sistema representativo. O sistema representativo não
é mais que urna organização com a ajuda da qual uma nação confia a alguns indivíduos
o que ela não pode ou não quer fazer. Os pobres fazem eles mesmos seus
negócios; os homens ricos contratam administradores. E a história das nações
antigas e das nações modernas. O sistema representativo é uma procuração dada a
um certo número de homens pela massa do povo que deseja ter seus interesses
defendidos e não tem, no entanto, tempo para defendê-los sozinho. Mas, salvo se
forem insensatos, os homens ricos que têm administradores examinam, com atenção
e severidade, se esses administradores cumprem seu dever, se não são
negligentes, corruptos ou incapazes; e, para julgar a gestão de seus
mandatários, os constituintes que são prudentes mantém-se a par dos negócios
cuja administrado lhes confiam. Assim também os povos que, para desfrutar da
liberdade que lhes é útil, decorrem ao sistema representativo, devem exercer
uma vigilância ativa e constante sobre seus representantes e reservar-se o
direito de, em momentos que não sejam demasiado distanciados, afastá-los, caso
tenham traído suas promessas, assim como o de revogar os poderes dos quais
eles tenham eventualmente abusado. Eis por que, tendo em vista que a liberdade
moderna difere da antiga,
conclui-se que ela está
ameaçada também por um perigo de espécie diferente.
O perigo da
liberdade antiga estava em que, atentos unicamente à necessidade de garantir a
participação no poder social, os homens não se preocupassem com os direitos e
garantias individuais.
O perigo da
liberdade moderna está em que, absorvidos pelo gozo da independência privada e
na busca de interesses particulares, renunciemos demasiado facilmente a nosso
direito de participar do poder político.
Os
depositários da autoridade não deixam de exortar-nos a isso. Estão sempre
dispostos a poupamos de toda espécie de cuidados, exceto os de obedecer e de
pagar! Eles nos dirão; "Qual é, no fundo, o objetivo de todos os vossos
esforços, o motivo de vosso trabalho, o objeto de vossas esperanças? Não é a
felicidade? Pois bem, essa felicidade, aceitai e nós nos encarregaremos dela."
Não, Senhores, não aceitemos. Por mais tocante que seja um interesse tão
delicado, rogai à autoridade de permanecer em seus limites. Que ela se limite a
ser justa; nós nos encarregaremos de ser felizes.
Poderíamos ser
felizes através de regalias, se essas regalias fossem separadas das garantias?
Ou encontraríamos essas garantias se renunciássemos à liberdade política?
Renunciar a ela, Senhores, seria uma loucura semelhante a do homem que, sob
pretexto de habitar no primeiro andar, pretendesse construir sobre a areia um
edifício sem fundações.
De resto,
Senhores, será mesmo verdade que a felicidade, de qualquer espécie que ela
possa ser, seja o único objetivo do gênero humano? Nesse caso, nossa meta seria
muito estreita e nosso destino muito pouco nobre. Não haveria nenhum de nós que
- se quisesse rebaixar-se, restringir suas faculdades morais, aviltar seus
desejos, renunciar à atividade, à glória, às emoções generosas profundas - conseguisse embrutecer-se e ser
feliz. Não, Senhores - e eu invoco como prova a parte melhor de nossa natureza,
a nobre inquietude que nos persegue e nos atormenta, a paixão em alargar
nossas luzes e desenvolver nossas faculdades -, não é só à felicidade, é ao
aperfeiçoamento que nosso destino nos chama; e a liberdade política é o mais
poderoso, o mais enérgico modo de aperfeiçoamento que o céu nos concedeu.
A liberdade
política, submetendo a todos os cidadãos, sem exceção, o exame e o estudo de
seus interesses mais sagrados, engrandece o espírito, enobrece os pensamentos,
estabelece entre eles uma espécie de igualdade intelectual que faz a glória e o
poder de um povo.
Assim, vede
como uma nação cresce com a primeira instituição que lhe devolve o exercício
regular da liberdade política. Vede nossos cidadãos de todas as classes, de
todas as profissões, saindo do círculo de seus trabalhos habituais, de sua
indústria privada, encontrar-se de repente do nível das funções importantes que
a constituição lhes confia, escolher com discernimento, resistir com energia,
confundir a astúcia, desafiar a ameaça, resistir nobremente à sedução. Vede o
patriotismo puro, profundo e sincero triunfando em nossas cidades, animando até
nossos povoados, atravessando nossas oficinas, reanimando nossos campos,
impregnando do sentimento de nossos direitos e da necessidade de garantias o
espírito justo e reto do agricultor útil e do negociante hábil, que,
conhecedores através da história dos males que sofreram, e não menos
esclarecidos sobre os remédios que esses males exigem, abrangem com o olhar a
Franca inteira e, distribuidores do reconhecimento nacional, recompensam pelos
votos, há trinta anos, a fidelidade aos princípios, na pessoa do mais ilustre
dos defensores da liberdade.
Longe, pois,
Senhores, de renunciar a alguma das duas espécies de liberdade de que vos falei,
é preciso aprender a combiná-las. As instituições, como diz o célebre autor da
história das repúblicas na Idade Média, devem realizar os destinos do gênero
humano; elas cumprem tanto mais esse objetivo quanto mais elevam o maior número
possíveis de cidadãos à mais alta dignidade moral.
A obra do
legislador não é completa quando apenas tornou o povo tranquilo. Mesmo quando
esse povo está contente, ainda resta muita coisa a fazer. É preciso que as
instituições terminem a educação moral dos cidadãos. Respeitando seus direitos
individuais, protegendo sua independência, não perturbando suas ocupações,
devem, no entanto, consagrar a influência deles sobre a coisa pública,
chamá-los a participar do exercício do poder, através de decisões e de votos,
garantir-lhes o direito de controle e de vigilância pela manifestação de suas
opiniões e, preparando-os desse modo, pela prática, para essas funções
elevadas, dar-lhes ao mesmo tempo o desejo e a faculdade de executá-las.
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